A estratégia do Azevedo falhou no modelo, um 220. O mercado pedia os maiores, 280 pra cima. Um 220 era visto como táxi na Europa e não agradava os endinheirados daqui que, mesmo naquela época, eram habituées por lá.
O carro encalhou e o Azevedo resolveu ficar com ele. Os amigos de Azevedo, todos da classe média, se assustaram, afinal, manter um carro daqueles aqui era tarefa para os ricos.
Aos poucos ele (e nós, os amigos) descobriu que o carro era barato de manter, pois não dava manutenção, não precisava de peças. Sem acidentes, ele atravessava os anos trocando fluidos e colocando gasolina. Uma limpeza aqui, uma troca de filtros ali...
Depois de mais de 20 anos usando o carro, Azevedo concluiu que o custo de operação do 220 era menor que o das várias Brasílias e Variants que a mulher dele comprou e usou no mesmo período.
Contei esta história para fazer um paralelo com os dias de hoje, quando compramos no Brasil carros populares que são tão confiáveis quanto era aquela cara Mercedes da década de 70.
O que mudou desde então? Tecnologia e escala.
A tecnologia aumenta a confiabilidade dos sistemas e a escala garante métodos produtivos capazes de produzir itens de alta confiabilidade e elevado agregado tecnológico, a baixos custos. Resultado: produtos bons e baratos.
Neste meio caminho o mercado se impôs e a precificação de mercadorias passou a ser cada dia mais complexa. Com os custos da produção em queda, com a melhoria dos padrões de qualidade, a indústria se viu num rodamoinho de competição feroz.
Neste ambiente, diferenciar os seus produtos pode ser a receita para garantir largas margens de lucro para uma indústria. É a lei da oferta e da procura, no caso dos carros, com um componente adicional, o seu forte apelo emocional. Itens especiais, de baixa produção, que associam imagem de sofisticação, são valorizados e procurados pelos clientes. Itens de boa qualidade massificados tendem a ser encarados como commodities, onde a qualidade e o preço são pesados na mesma balança.
Dito isto, chegamos onde eu queria, o mundo dos vinhos.
“Glamorizado” por anúncios e estratégias de marketing, como foi o cigarro, o vinho ganhou status único, de item glamoroso, amigável com o meio ambiente e que faz bem à saúde dos que o bebem. Enquanto o cigarro fede e estampa fetos deformados em seus maços, o vinho tinto exala aromas complexos e carrega polifenóis, como os taninos, além de flavonóides e resveratrol que beneficiam a saúde humana (e a alma...).
De alguns anos para cá, ficou comum ver grupos de antigos cervejeiros com garrafas de vinho sobre a mesa, na roda de amigos. Passou também a ser comum a taça de vinho compor a dieta diária do almoço executivo, feito às pressas nos centros financeiros.
Entendidos e “eno-chatos” rapidamente se espalharam pelo mundo. Os fabricantes acharam campo fértil para “glamorizar“ e valorizar seus produtos. O mercado e a imagem se impuseram sobre a realidade.
No passado, o vinho já foi tendenciosamente definido como “bebida alcoólica, fermentada da uva e fabricada na França” (vi esta definição num velho dicionário francês). É verdade que nas terras francesas sempre se fez ótimos vinhos, mas muitos ruins também.
Seja na França ou em outra região qualquer produtora de vinhos, a qualidade das uvas (e depois dos vinhos), depende de vários fatores, tais como: terra, sol, chuva, etc.
Nem sempre estes fatores são favoráveis em uma determinada safra. Nas safras ruins, os produtores de rótulos famosos, simplesmente não embalam seus vinhos (muito correto). Eles o vendem a terceiros, ou o embalam com outras marcas.
Já em safras boas alardeiam suas qualidades (como esperado) e valorizam seus produtos. Sempre alertas para não inundarem o mercado com grandes quantidades (o que levaria à banalização e queda do preço).
Já nas safras boas e grandes, embalam uma parte com seus rótulos (de preços altos) e vendem outra parte para os merchants, que os embalam com seus próprios rótulos (a preços baixos).
A estratégia é ótima. A pequena disponibilidade do bom vinho garante ao vinho um elevado preço no mercado. Fica preservada a relação de pouca oferta para muita demanda. Já o bom vinho restante, vendido a preço de custo aos merchants, chegam ao mercado a preços de vinhos populares ou médios. Um bom negócio para todos.
Nesta lógica caem por terra as afirmações tendenciosas e recorrentes de que “vinho bom é vinho caro” (AS SEEN ON TV) ou que “vinho bom não pode ser barato”. Na TV aberta brasileira, um “homem do vinho” vive alardeando que “não há vinho bom que custe menos de R$ 100,00...”. Vale lembrar que ele é dono de uma loja de vinhos em São Paulo.
Este tabu foi criado pelo interesse econômico, não pela realidade. Esta ditadura econômica merece ser desmistificada. Para sua queda há mais dois fatos que podem contribuir:
- As técnicas de cultivo e produção, hoje melhor dominadas e disseminadas, passaram a ser incorporadas por mais produtores, permitindo a produção de vinhos de qualidade em larga escala.
- Preço não tem nada a ver com custo (em qualquer atividade econômica, não só nos vinhos).
Temos que refletir sobre a questão dos custos de produção dos vinhos. Como já disse anteriormente, as técnicas de seleção das videiras, de sua manutenção e colheita das uvas, hoje são conhecidas e dominadas por muitos.
As técnicas e equipamentos para a produção de vinho idem, isto leva a um efeito de escala que reduz custos, sem abrir mão da qualidade.
É um paralelo do carro popular de hoje se nivelando à qualidade da Mercedes de ontem.
Fique claro que não quero dizer que não haja vinhos excepcionais, produzidos em vinicultores tradicionais, com custos de produção elevados. Eles existem, mas a diferença de qualidade deles para os demais bons vinhos é muito menor hoje do que foi no passado. Os preços não, pelo contrário, cada vez há mais diferenças.
Podemos dizer que os preços de venda estão relacionados à qualidade, à imagem daquele vinho, à sua raridade no mercado, mas também (infelizmente) muito ligado às avaliações dos “especialistas”.
Pedir um vinho de US$ 5.000 num restaurante é cada vez mais um símbolo de poder, de status, de quem precisa mostrar isto. Impressionar os demais nas mesas próximas é o objetivo velado, de forma a que vejam o seu poder, seu conhecimento e seu “desprendimento financeiro” como enófilo.
Se ao “desprendido” fosse oferecida uma garrafa sem um rótulo famoso e caro, mas nela estivesse um bom vinho, dificilmente o “entendido” o reconheceria como tal, ficaria preso à questão do custo.
Esta constatação, que muitos vivenciam observando as demais pessoas no dia a dia, foi constatada, com rigor científico, pelo enófilo americano Robin Goldstein, formado em Filosofia em Harvard e doutorado em Direito por Yale.
Robin, com esta formação de largo espectro, realizou dois tipos de experimento com o mesmo grupo (cerca de 500 pessoas), formado por leigos e especialistas, bebendo os mesmos vinhos (de variados preços e origens) em duas situações distintas:
· Teste às cegas (sem rótulo ou preço)
· Teste às cegas, sem rótulos, mas com os preços dos vinhos declarados.
O estudo pretendia “desmistificar especialistas e concursos enológicos que ditam o que é melhor para o consumidor", disse Robin em 2008 à revista Época. O experimento gerou como resultado:
- no primeiro teste, vinhos baratos foram tão bem avaliados quanto os vinhos caros,
- no segundo teste, apenas os vinhos mais caros foram bem avaliados.
É o que ele chama de “efeito placebo”, usado em seres humanos, como método isento e comparativo em testes de eficácia de novos medicamentos.
Ele concluiu o que muitos já sabiam, mas não tinham como provar:
· vinhos bons (que agradam aos bebedores) podem ser baratos.
Não satisfeito e para jogar uma pá de cal sobre a ditadura dos enólogos e especialistas, que pontuam o que deve e não deve ser bebido, Robin foi maquiavélico, tomando uma ação radical, cumprindo as seguintes etapas:
- criou na Internet o site do restaurante milanês Osteria L'Intrepido;
- criou uma carta de vinhos, meticulosamente escolhida;
- contratou um telefone para o restaurante, com secretária eletrônica;
- gravou mensagem dizendo que o restaurante estava em obras;
- inscreveu a carta de vinhos no concurso anual da badalada revista Wine Spectator (WS).
Acima de qualquer expectativa de Robin, a carta de vinhos que ele montara para o restaurante Osteria L'Intrepido foi a vencedora do concurso !
O maquiavelismo se deveu a dois fatos:
- A carta de vinhos foi montada cuidadosamente, com rótulos famosos, mas de safras “detonadas” pela revista WS em edições anteriores.
- O restaurante não existia e nunca existiu !
Robin desmoronou o milionário castelo de cartas da Wine Spectator (WS), que há anos ditava regras sobre vinhos, cartas, restaurantes, sommeliers, produtores, regiões, etc., e lucra muito com isto. Só com as inscrições dos restaurantes no concurso anual das cartas de vinhos, a WS arrecadava anualmente mais de um milhão de dólares.
A revista WS saiu célere e incisivamente em sua autodefesa, mas nada do que disse, diga ou dirá pode justificar os fatos apurados.
Verdade seja dita, a ditadura da imprensa e do merchandising não está restrita à WS, há muitas outras revistas, muitos enólogos e muitos meios de comunicação que ditam regras sem a isenção comercial que seria necessária para fazê-lo.
Para os eno-chatos, ou mais diretamente, para os eno-bobos, fica então a pergunta: como você escolhe seus vinhos?
- Com base na opinião dos enólogos?
- Pela pontuação das revistas “especializadas”?
- Pelo preço cobrado no revendedor?
- Pela carta de vinhos premiada?
- Pelo seu próprio gosto e experiências anteriores?
Se sua resposta foi qualquer uma que não a última, você pode estar se enganando e tomando um vinho mais caro do que ele realmente vale.
Você deve estar seguindo os ditames do mercado, dos interesses comerciais e não os do seu paladar.
Como este é um BOLG sobre carros, antes que algum “engraçadinho” me “espete”, sei que andar de Mercedes ainda é diferente de andar de Palio 1.0. A Mercedes fez muitos esforços para manter seu produto diferenciado num mercado onde a confiabilidade não é mais um diferencial tão importante. Só não gosto é da idéia é de pagar o preço de uma Ferrari por um Astra, ou de uma Mercedes por um Palio. Se vou comprar o Astra ou o Palio, quero pagar pelo que valem.
Sei também que se um ótimo e desconhecido Sforzatto, das pequenas vinícolas de Valtellina, chega ao mercado da vizinha Milão por honestos EU$ 16, não há razão para um bom e badalado Amarone Classico custar mais de EU$ 100 (algumas vezes até MUITO mais), já que as escalas de produção são favoráveis ao Amarone, a mão-de-obra tem custo similar, os processos de produção idem. Só os “especialistas” podem ditar as diferenças de preços, por culpa dos consumidores, que as aceitam.
Outro exemplo? O ótimo espanhol da Rioja, Faustino I, Gran Reserva, com apenas 240.000 garrafas produzidas e numeradas na safra de 1996, podia ser comprado em 2008 (12 anos depois!) por meros EU$ 18,90 no aeroporto de Madrid.
Para terminar, a frase é um lugar comum, mas vale repetir:
“Vinho bom é o vinho que eu gosto”.
Em tempo, num paralelo de Engenheiro de Automóveis que sou, arrisco dizer:
Carro bom é o carro que atende às suas necessidades.
Ainda em tempo, alguns prazeres de uma compra não têm vínculo com o pragmatismo desta abordagem. Comprar uma garrafa cara de um bom champagne envolve além do paladar, o glamour, a história, a mística, a cultura, o status e os prazeres sutis ligados a cada uma destas nuances.
O mesmo vale para quem compra um esportivo da Jaguar e só usa o carro para ir ao supermercado, a dois quilômetros de casa, quando um Uno Mille com ar condicionado, o atenderia funcionalmente.
Ao volante do Jaguar também os prazeres sutis (outros nem tanto) de acelerar o V8 na saída do sinal “não tem preço”... para quem tem o numerário suficiente para apreciá-los gota a gota..., de gasolina Podium, por favor !.
Ronaldo Martins
Engenheiro de Automóveis e enófilo.
Um comentário:
Parabéns pelo post! Meu preferido até agora! Excelente...tanto a comparação, quanto os argumentos!
Postar um comentário